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A Pitonisa - intertexto com base na Crônica "A Cartomante" de Machado de Assis


A PITONISA

Aprendera ainda criança. Não lembrava quando. Talvez nem tenha realmente aprendido, talvez fosse apenas um dom de nascença.
O fato era que essa habilidade com o tempo se aprimorara.
Desde que sua memória lhe acompanhava, em seus momentos de isolada e fantástica infância, conseguia perceber a história de um sonho ou de uma desilusão tão logo postava o foco da atenção sobre o mundo que a cercava.
Não era um mundo pequeno, esse. Na cidade onde nascera, era muita a gente que ali vivia.
Mas em geral eram sonhos comuns. Envolviam realização ou a frustração de desejos míseros, como a satisfação de carências materiais ou emocionais: amores perdidos, rivalidades profissionais, disputas e traições. Nada mais humano!
Poucas vezes vislumbrara desejos mais distintos, mais grandiloquentes ou mesmo altruístas. Não. Em geral era aquilo mesmo. A obviedade humana sempre a incomodara de uma maneira muito específica. Era um alfinetar silencioso, permanentemente presente, pulsando durante cada inalação, pedindo sempre mais espaço para se expandir, mas que não chegava a causar dor.
Nada parecia calar esse silêncio atordoante, essa diferença. Ah, não! Havia momentos em que sentia-se ordinariamente pertencente ao mundo dos comuns. Na verdade, dois momentos. O primeiro, mais intenso e mais raro, era quando podia sentar-se à beira mar em uma tarde ensolarada de inverno, daquelas em que o sol teima em tentar alcançar o solo e irradiar sua luz em espelho sobre as águas marítimas, deixando o ar mais límpido, mais puro, mais permeável aos odores. Mantralizando uma respiração impregnada desses aromas, ali ela se sentia realmente grata por essa acurada percepção da vida. Mas como são raros os momentos de pureza invernal...
A outra situação de identidade coletiva que lhe assomava era quando interpretava.
Não, ela não era atriz, ou pelo menos, não o era sabidamente por todos. Sua aura de mistério, habilmente construída ao longo de muito estudo e ensaio fazia da atmosfera de sua saleta de consultas um verdadeiro templo de oráculos desde sempre presentes na imaginação de qualquer um que buscasse soluções mágicas para a vida.
O ar abafado, carregado de veludo e velas, incenso e pedras tornava o misticismo uma ferramenta obrigatória para incutir nos consulentes as palavras que queriam ouvir. Essa magia tinha de estar presente quando ela focava a atenção no cliente, buscando nos recônditos desejos qualquer sinal que sugerisse o caminho a trilhar na busca pelas palavras desejosas e carregadas de gratidão. Nesse caso, a gratidão tilintava em mais e mais moedas.
Mas não era a riqueza que a motivava. Era o poder. O poder de se sentir capaz de gerar felicidade ou alento, de provocar o movimento, de decidir a rota pelo qual essa ou aquela desnorteada alma ia buscar. O poder da escolha, da decisão, o poder de fazer acreditar que era capaz de desvendar o futuro.
Se bem era um diferencial, o que por si só já seria um paradoxo na busca de seu próprio alento de humanidade, essa sensação de poder dava uma finalidade para seu dom. Uma finalidade que ela nunca houvera pensado se era inócua ou pérfida.
Até aquela tarde de maio, ela jamais houvera pensado no quanto o poder do conhecimento da verdade atribui-nos uma responsabilidade que nem sempre estamos dispostos a arcar.
Mas não foi em maio que tudo começou. Devia ter sido em outubro do ano anterior. E se não fora o mau fadado horário de verão, que desorganizava todo seu sistema biológico de adaptação social, ela possivelmente teria percebido os sinais bem a tempo de demovê-los dos atos funestos que se seguiriam até o trágico desfecho.

2
Ela veio primeiro. Moça graciosa e com certo maneirismo, um jeitinho ingênuo e de fácil convencimento. Bem vestida, com roupas de corte moderno e pouco comum naquelas paragens. Parecia querer aparentar menos idade da que realmente possuía. Um tipinho comum, com inteligência comum e desejos comuns. Chegou com aquele ar furtivo, como alguém que tenta se esgueirar pelas sombras alheias, uma pretensa calma que denuncia o mais vigoroso dos vícios: a volúpia, a luxúria, o inescrupuloso desejo da traição. Veio cedo, tão cedo que as garrafas lácteas ainda jaziam às portas.
Do pouco que viu, graças a noite de sono precocemente interrompida, aquela expert nos assuntos humanos julgou perceber nos suspiros incontidos e na sofreguidão do olhar a inequívoca marca da paixão juvenil, ainda que um pouco tardia. Um breve toque nas mãos e o esperado suor frio dos que temem ser descobertos. Não, ela não se equivocara. Ali estava uma jovem desejosa de encontrar a certeza do amor não correspondido, não consumado, ou não revelado.
Presa fácil, a jovem consulente foi logo confirmando com detalhes diante das primeiras sugestões ditadas pela esfinge machadiana, ade acordo à prática baseada no velho axioma por ela transformado: “decifro-te e devoro-te”.
Causa simples, rota comum, facilmente construída e apontada, para um tal serzinho supersticioso. “Você ama alguém e tem medo de que este alguém a esqueça.” Disse a falsa velha sábia. “Ele a ama e a quer, enfrentará tudo e todos para estar junto de si.”
Ah, como é leve a alma humana quando se quer deixar levar...de pouco valeu esta consulta, pois que esse espírito era dócil e facilmente conduzido pelas vinhas da obviedade.
Os espíritos mais rebeldes, mais críticos, esses sim são as conquistas mais difíceis. Esses sim valem o esforço, pela inconstância entre a dúvida, esperança e relutância em acreditar. A eles a pitonisa creditava o benefício da dúvida. Contudo, a graciosa e cálida criatura não merecia tais empenhos, e foi brevemente esquecida. Houvera ela dormido o tanto quanto lhe aprouvera, teria percebido por trás dos gestos fáceis e das faces rubras aquele não-sei-quê que subjaz por trás do não dito, aquele ar de pecado e devassidão que somente as mais lascivas buscam esconder. Ah sim, a moça não era de todo desinteressante, mas à pitonisa se lhe escapou por entre os olhos. Ledo engano, culposa falta e domínio mau direcionado. Mas isso ela não saberia antes de decorridos mais seis meses.

3
           Afoito, assustado, acuado...As batidas na porta denunciavam que o sujeito atrás da porta encontrava-se deveras desesperado. Hummmm, esse era o tipo de conquista mais prazeroso, raras são as oportunidades em que os desesperados incrédulos vinham bater a sua porta. Mas como ele se denunciou? Teria sido o cabelo em desalinho, as roupas um tanto amarrotadas, o estilo de trajar-se? Não, era algo mais. Um olhar paralisado pelo medo, mas ainda assim prescrutinador. Não, ela não se enganava nunca quanto a um tipo. O sujeito por certo sofria de amor, mas não fora isso que o trouxera até ali. Dívidas? A julgar pelo semblante carregado, os ombros contraídos e o olhar em constante movimento, a maestria lhe sugeriu que o rapaz estava com medo de algo muito poderoso. Tão logo ele postara-se a sua frente, a personagem italiana por ela criado veio a tona e lançou as primeiras sílabas

            - O senhor tem um grande susto...

            A cabeça balançante a sua frente era o sinal de que mais uma vez não errara em sua observação do comportamento alheio.

           - E quer saber se lhe acontecerá alguma cousa ou não...

A hesitação que margeava pelos olhos do rapaz deu lugar à excitação, e, tal qual o sol que se faz aparecer em brechas por entre as nuvens, não se viam mais apenas sombras, mas sim raios esperançosos de felicidade.
A entrevista durou o tempo suficiente para que a pitonisa se deixasse enlevar pelo doce sabor da vitória. Mais uma vez o poder exalava seus odores sutis, preenchendo com suave vitalidade o desejo de estar no mundo dos homens, ainda que menos incautos, cegos e imobilizados por abrirem mão de seu próprio poder de decisão e escolha.
Sim, esse discernimento proporcionava-lhe um conhecimento sobre o mundo das cousas e das gentes ao que muitos chamariam de premonição, magia, bruxaria ou mesmo satanismo.
Porém, era a consciência de sua condição que lhe proporcionava uma sensação de extrema liberdade e satisfação.
Nunca ela gozara de qualquer arrependimento, nem mesmo quando, por entre os vincos do pensamento se lhe assomavam imagens de uma consciência fantasmagoricamente pesada, jamais ela pudera imaginar os sentimentos que viria a sentir, durante o dia que ainda não findara.
Ao frenesi causado por mais uma conquista seguira-se o abalo mais profundo e trevoso de que um ser humano possa ser capaz de aguentar. Até então, tal qual um Raskólnikov, ela acreditava estar acima dos sentimentos de culpa, já que estes eram produto de uma sociedade hipócrita e coercitiva. Não, um espírito livre não se deixaria levar por sentimentos tais. Mas, tal qual o anti-herói dostoyevskiano, a notícia do duplo homicídio passional, estampando em primeira página dos jornais as imagens dos amantes traidores-traídos a deixou paralisada em um interregno que não durou por mais do que poucos segundos, mas que se fez presente até o fim de seus dias, atormentando-a como o fantasma silencioso, uma sombra que se alimentava de sua própria dor de culpa.
Um crime sem expiação, sem castigo, a não ser a corrosiva sensação de um prometeu acorrentado no próprio orgulho, embebido na vaidade dos presunçosos, incapaz de assumir que na condição humana não há lugar para a perfeição, somente para o perdão.

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